1974

Renan Sá
3 min readJun 1, 2024

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Meus mais sinceros agradecimentos ao encontro de Caio e Clarice, relatado em uma carta enviada a Hilda Hilst, em 1970.

Ao meu menino,

A carta para você já estava pensada, mas aconteceu agora de noite um negócio tão improvável que vou escrevê-la. Depois de ter visto uma foto sua num ímã da geladeira fui regar as plantas para vê-lo sentado à escrivaninha: da janela era possível ver o quarto na mais perfeita ordem, os livros na estante organizados por ordem alfabética, o lençol da cama sem nenhuma incongruência, a cortina semi aberta em contraste à luz do poste que garantia a penumbra, sem a sua presença. Talvez estivesse autografando seus livros numa festa literária televisionada, à noite.

Molhei os cactos e fui à sala. Liguei a tevê, nervoso, lógico. Vi um homem em meio àquela gente, que não se assemelhava àquele da fotografia, com uma jaqueta de couro e um jeans azul, tão presente e distraído que parecia um santo, absolutamente fantasmagórico. Era você. Eu seria capaz de conhecê-lo por meio daquelas palavras que eram escritas e não significavam nada para mim. Me aproximei para ouvir o som de sua respiração ou, quem sabe, da caneta deslizando pelo papel, já que seria impossível ouvir a sua voz. À medida que eu me aproximava qualquer resquício de você se tornava mais distante. Às vezes tenho memórias tão longínquas que julgo inventadas.

De repente, peguei um dos seus livros que estavam dispostos no meu santuário e saí em direção à varanda. Pedi em voz sussurrada, como se falasse com Deus: — Fica comigo. Mas você já se tornara onipresente.

Desde menino lembro de ti desta maneira, indecifrável. Só sabíamos das suas dores quando as feridas estavam no processo final de cicatrização. Você escrevia palavras em folhas de sulfite dobradas ao meio, as quais éramos incapazes de compreender. Uma vez, numa daquelas semanas em que você se resignava às pesquisas, eu disse à sua mãe: ele é sozinho. Eu mal podia reconhecer suas mãos largas às pequenas daquela criança. Quando tentávamos estabelecer um diálogo eu me deparava com o tormento. Estar ao seu lado era contração e repulsão. Era impossível não pensar a todo instante de onde vinha essa força perigosa.

Entro no seu quarto e a sensação é estranha. Uma coisa dolorosa. Quase grito por um autógrafo para rever o seu nome e a sua caligrafia. Vejo o exemplar deste livro que, segundo a sua descrição, não dizia nada e, por essa razão, tornava-se digno da mesa de cabeceira. Os livros que saíam da estante para as mesas haviam sido promovidos, pois estavam sujeitos à alteração. Esse movimento era o único que indicava alguma desordem neste quarto dogmático.

Não sei por qual razão decido verificar a verdade do que penso. Olho para o chão e próximo à porta balcão há um punhado de terra úmida, que marca o primeiro ato de íntegra inadequação desse ambiente. A pequena vasilha de barro que sustentava a pequena planta está partida na varanda. Te vejo e você diz: — E aí.

Esse seu gesto informal e impessoal é quase impreciso. A quem se dirige e por quê?

Não sei dizer se estou fantasiando. Mas penso que não, pois a impressão provocada foi fortíssima, e não haveria neste mundo presença que não fosse a sua capaz de me perturbar assim.

R.

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