Arrume-se comigo

Renan Sá
4 min readApr 1, 2024

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(Para ler ao som de Britney Spears)

Pus a música… a música, não, uma música… poderia ser qualquer outra. Bastava que estivesse cheia de instrumentos barulhentos e sintetizadores. Get Naked (I Got a Plan) da Britney Spears. Too Long / Steam Machine do Daft Punk. Essas músicas inibem a aceleração das coisas porque duram mais de quatro minutos. Todos sabemos que quatro minutos é tempo demais. De quatro a sete minutos dura o relaxamento do meu corpo todos os dias. A duração da música é a duração da minha aflição, que dá lugar a uma grande angústia. Eu estou inflamado. E desejo descrever essa inflamação. Tenho 25 anos e vivo com os meus pais. Essa é uma afirmação objetiva; não diria aleatória. As paredes deste quarto estão em chamas. Cinza queimado. Próximo à cama há alguns livros: Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima, O que amar quer dizer, de Mathieu Lindon, Manifesto Contrassexual, de Paul B. Preciado, Introdução à análise argumentativa, de Marcus Sacrini e Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara. Estão todos em andamento; alguns há meses, outros há poucas semanas. Nenhum a dias porque vivo distraído. À esquerda do lugar onde ponho o travesseiro há uma ecobag ao avesso. Cheguei bêbado e derrubei todo o seu conteúdo: um isqueiro laranja, um maço amassado de Parliament, AirPods falsificados, Bilhete Único, Carteira de Identidade, um cartão de crédito universitário com um limite de mil e quinhentos reais, um hidratante labial e um analgésico. Já carreguei um pequeno bloco de notas e uma caneta, mas não mais. À esquerda da ecobag há a escrivaninha, com uma luminária, um computador que está na sexta parcela de doze, uma garrafa de água que me recorda o fracasso em manter os três litros de água diários, duas bananas-pratas que apodrecem junto a minha dieta minuciosamente elaborada no penúltimo dia do mês passado e um óculos que venceu há dois anos. A cama é um mundo, às avessas, mas residência. Nesta, que agora estou sentado, há um lençol e um edredom que foram remexidos. São nesses tecidos que vivo. São esses os tecidos que aparecem como plano de fundo em fotos do meu pau e da minha bunda. São esses os tecidos que cuido para não sujar de porra quando falo sacanagem por mensagem. São esses os tecidos que me embalam em dias de outono em que a luz do sol não aquece. São esses os tecidos que me envolvem quando estou em posição fetal. São esses os tecidos que mantêm a aura de um sonho frágil. São nesses tecidos em que imagino alguém que me abrace e me ouça. São nesses tecidos em que fantasio um homem que me fode com força. São nesses tecidos em que me mantenho estático durante quatro a sete minutos todos os dias, quando posso ser algo que reconheço. Agora faltam alguns minutos para as dez da manhã e ainda não consegui me levantar. Sigo sentado na borda lateral da cama, frente a um grande espelho, em que vejo um menino-homem de expressão cansada, quase nu se não fosse pela cueca preta e justa, quase morto se não fossem os corpos cavernosos do pênis cheios de sangue. What I gotta do to get you to want my body? A caixa de som está em seu volume máximo. A esta hora não penso em nada. Mas posso dizer o que haveria se a música estivesse desligada. O hidratante de mãos que presentearei minha mãe está no colo de um loirinho da universidade que conheci semana passada e que quer morder o meu pescoço para marcar um território onde não estou já que este corpo nem pertence a mim senão ao meu trabalho em um dos principais marcos financeiros e turísticos de São Paulo embora não seja suficiente para me conceder um pequeno apartamento no centro da cidade em que eu possa preparar um risoto de carne com rúcula e limão siciliano para servir com vinho aos amigos que me visitarão no sábado à noite para conversarmos sobre as coisas que fizemos e as que não fizemos e também para usarmos ácido e falarmos sobre amores e devaneios dessa juventude que não se esvai porque estamos totalmente imersos nela inalando cada uma de suas substâncias perversas a ganância a luxúria o ócio todos inexistentes como o imóvel e essas companhias que não são visíveis porque estamos todos correndo em direção a um lugar virtual num transcurso de tempo que não possibilita o ganho da vida seja pela existência ou pelo capital porque tudo se esvai antes que chegue aos meus braços ainda que eu esteja pronto para agarrar ainda que eu esteja pronto para ouvir os sons da natureza. If you like what you see, end your curiosity. Não consigo ver além dos postes de energia e dos conjuntos habitacionais. A gramática normativa não se adequa inteiramente à expressão. Sempre chega o dia em que os livros param de dizer algo a alguém. Não há porque negar que nos percebemos vulneráveis e escolhemos não fazer nada. Nenhuma dor é metafísica. Não me siga que não vou a lugar nenhum. Não se acomode porque não desejo ocupar este lugar. Há muito que não dou um beijo amoroso sem pensar de modo sudoroso. Já não observo uma pupila por mais de três segundos porque todos desviam o olhar. Nem sei se é possível fazer outra travessia. Let your mind roam free, won’t you pay attention please? Uma cama. Um rosto. A cueca e a ereção machucam a glande. Preciso começar a trabalhar daqui trinta e dois minutos. Dez para o banho. Cinco para a troca de roupas e a rotina de cuidados pessoais. Seis minutos para preparar a panqueca. Cinco para comê-la. Nove para consumir a maior quantidade possível de informações. We can do it, baby, baby, baby…

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