Crônica de abril: o confessional não é social

Renan Sá
2 min readJun 7, 2024

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Algo que descobri sobre mim aos 24: passei de uma pessoa profundamente imaginativa e onírica a alguém que vive concentrado na materialidade das coisas. Desde criança sempre tive um fascínio pela criação de mundos e uma sede por experiências, o que terminava por fazer com que eu me fechasse em mim, um pouco alheio às coisas que estavam na minha frente. Penso que, de certa forma, essa imaginação em demasia afetou as minhas relações amorosas, familiares e de amizade; criei figuras ideais de amores e afastei reais possibilidades de apreender o que é o amor, desenvolvi uma profunda dificuldade em estabelecer laços por ter medo de não estar pronto, dediquei-me em menor grau àquilo que era fundamental, como os meus estudos; e, ao fim, não alcancei o mundo superior, tampouco ascendi no meu plano, porque estive, por muito tempo, distraído olhando o céu, esquecendo-me de que sou agressivamente terreno.

Hoje, contudo, já não me prendo às nuvens e às preces que não me aproximaram de uma existência hermética; já não leio literatura com grandes sentimentalismos; já não espero um lampejo cinematográfico de vida; já não vejo beleza na Sagrada Família, no Coliseu, na Catedral de Milão, no Castelo de São Jorge e nas grandes torres e arranha-céus que se isolam em outro mundo; já não sou capaz de estabelecer uma unidade de sentido às linhas pontilhadas, às nomenclaturas familiares e à possibilidade de que eu possa ser e ensinar algo a alguém; já não espero que um ser atento me convide para sairmos do trem; já não espero que se comovam pela nevralgia num ponto fundo da minha alma, porque não possuo uma. Em vez disso, faço-me por reações somáticas; vou à caça da orientação argumentativa, procurando ler o mundo por meio de operadores argumentativos; sinto a sala de cinema e depois regresso para preparar o jantar, ouvindo as vozes distantes de professores e tenistas, de jovens do pós-guerra e de amantes desesperadas, enquanto o azeite e o alho emitem ruídos mais altos; vejo com um misto de frieza e esperança a paisagem indestrutível, com seus muros grafitados e barracas de espetinho, que ojalá pudessem me ter integrado; reconheço a minha própria escuridão e negligencio o toque, observando de longe quem expulsei para longe de mim, inteiro; faço às vezes pelos outros aquilo que lhes concede uma crença nas criações que em mim foram desmaterializadas; sento-me sozinho à mesa e presumo que não virá ninguém ao meu encontro; escrevo para prolongar em algumas frações de segundo a consciência.

Aos 24 me pergunto se sou um escritor e se estou vivo.

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