Ilegível

Renan Sá
3 min readMay 26, 2024

--

Isso é um engano. É como escrever poesia. Não percebe que estamos nos deparando com o vazio? À medida que você avança, e eu me distancio, convergimos.

Estamos nesta exposição de obras ilegíveis. O mais engraçado é que não se fala sobre os quadros e artefatos. As explicações que ouço, agora, relacionam-se à arquitetura do espaço. Uma fábrica transformada em museu. O lugar de opressão é, agora, palco para a partilha dos nossos saberes, frágil como os olhares que sustentamos, revolucionário como o laço que se estabelece. Uma canção me vem à cabeça, talvez deslocada de sua composição. Angels. Você se move pelo espaço, como se respirar fosse fácil. Eu, por outro lado, integro-me às rígidas estruturas deste espaço industrial, seguindo outra direção.

Isso não é paixão. O que é que se entende por paixão?

Os outros dizem que não posso, pois há em mim essa vocação para a inaptidão. Então escolho a razão e, portanto, a inverdade. Digo que dormi só num dia em que estive sozinho, na cama, com alguém. Às vezes, contudo, prefiro falar a língua do desejo, o que me mantém encurralado na minha própria armadilha, situando-me num lugar de escárnio, pois deve ser uma doença não crer num estado pleno de satisfação. Essa possibilidade, que outrora me parecera absurda, convence-me, hoje, da minha inadequação. Eu não amo você. Seria impossível dizer o contrário.

Uma vez ele chorou no meu colo como um bebê. Acariciei os seus cabelos como uma mãe faz com um filho frágil. A irmã dele ligou e percebeu o desespero do caçula. Ela desligou e desejou boa sorte. A sorte é que eu estava lá e pude ver um homem morrer.

Não peço que me leia. Referencio coisas esquivas à escrita. Digo, se escrevo uma carta, os verdadeiros dizeres estão na caligrafia, na data, na rubrica. Não espero que perceba. Escrevo e não envio. Também não queimo o papel. Deixo registrado e ali está. Desejo fazer da existência um registro, isto é, com estas palavras me mantenho, terreno, ao único lugar que conheço. Aos que não me conhecem peço que me encontrem naquilo que não está dito, pois é onde estou. É o único lugar possível.

Por que alguém diria isso? Por que estou profundamente cravado na impossibilidade? Por que sinto medo? Por que não posso? Por que estou frio se estou vivo? Por que não é possível recorrer a Deus? Por que já não posso mais dizer eu te amo? Por que eles não podem me acessar? Por que esboço reações fisiológicas pela metade? Por que a sua dor me machuca? Por que este é o meu corpo? Por que me sinto preso à juventude? Por que não consigo gritar? Por que não me levanto da cama se já não tenho sono?

Ele me chama, e eu digo não, concedendo-lhe tantas dessas negativas espaçadas, que me torno quase um santo. Essencialmente puro. Estou lá e, por isso, torno-me desejável, bem como intocável, àqueles que se mantêm na sacristia, enquanto me observam no palanque, santo, santo, santo…

Recebo essa mensagem em que você me convida para um jogo de vôlei. Deve ser interessante ver a seleção feminina. Nesse instante penso que escolheria fazer qualquer outra coisa da vida, pintar botões, fazer tricô, vender flores, ser uma estrela do rock, gravar conteúdo adulto ou participar de um campeonato de voleibol. Desconverso. Tenho dezenas de redações para corrigir. Recuso ao seu convite porque não tenho coragem de assumir outra forma de existência que não seja essa.

A primeira vez que beijei um corpo o fiz de modo ensaiado. Sabe, isso é algo que eu prefiro não dizer, mas, por alguma razão, agora te revelo que o meu corpo sempre esteve cheio de fúria. Isso significa que não podemos fazer amor. Isso quer dizer que só posso oferecer o que não há em mim. Isso é revelar que quero ser útil. Faça o que quiser com essa revelação. Diga que não sirvo. Diga que não se pode amar alguém assim. Os meus amigos desconfiam, mas não sabem. Eu não existo para além de mim.

Seja lá o que isso signifique, desejo que saibam. E não sei bem por quê.

--

--